Transcrição de Rachel de Queiroz: Não Me Deixes
Rachel de Queiroz – Quixadá, palavra que em língua de índio quer
dizer “curral de pedras”. É realmente um imenso curral de pedras, um círculo de
pedras, onde no meio delas você vê minha cidade. Quer dizer que eu sou
quixadaense; Quixadá é realmente a minha cidade natal.
Maria Luiza de Queiroz – A Rachel começou a ler muito
cedo, com uns cinco anos ela aprendeu a ler e daí começou a ler, e ler Alencar,
e ler Machado e ler o Júlio Verne, por quem ela se apaixonou.
Irmã Elizabeth – Estudar até antes do colégio foi só em casa,
com a família, com o pai.
Rachel de Queiroz – Minha mãe não acreditava em educação formal.
Minha mãe era uma mulher de espírito muito moderno, muito inteligente, e meu
pai me contava a vida dos reis de França, a história da França.
Irmã Elizabeth – Preparavam bem em literatura, mas, na matéria
religiosa, ela estava um pouco atrasada.
Rachel de Queiroz – Mas um dia nós fomos visitar minha avó Rachel
e ela me chamou e disse: “Minha santa, você sabe rezar?”. E eu disse: “Sei”.
“Então vem cá, senta comigo”. E sentou na rede com ela e disse: “Faça o sinal
da cruz”. Eu fiz com a mão esquerda. Aí minha avó ficou escandalisadíssima e
viu que eu não sabia rezar coisíssima nenhuma, ninguém me ensinava em casa. E
fez um conselho de família, deu uma grande espinafração no meu pai e na minha
mãe e junto com as outras tias decidiram que eu iria ir para o colégio das
irmãs.
Irmã Elizabeth – Chegou mais ou menos aqui com dez anos. E a
nossa superiora na época era irmã Apoline Simas.
Rachel de Queiroz – A irmã Apoline me chamou e começou a falar
sobre história. Eu contei a história do Pedro I, Pedro II, Carlota Joaquina,
daí ela disse: “Rachelzinha, vamos fazer agora uma volta ao mundo”. E eu
perguntei: “A senhora quer pelo Estreito do Panamá ou pelo Estreito de
Magalhães?”. Ela ficou encantada. E era uma matéria que a irmã Apoline gostava.
Então ela disse; “Você pode ir para a segunda classe”, que era a penúltima. Eu
não sabia nem o que era um substantivo, um adjetivo, conjugação de verbo;
análise lógica e gramatical eu nunca tinha ouvido falar; e somar eu mal ou bem
somava de uma em uma parcela.
Irmã Elizabeth – Recuperou muito bem. E o certo é que aqui
terminou em 1925.
Rachel de Queiroz – Foi o único ensino formal que eu tive na
minha vida. Se há um autodidata total, sou eu.
Rachel de Queiroz – Quando eu tinha nove anos, uma vez papai me
trouxe aqui, me mostrou a fazenda. Disse: “Quando você casar, mande seu marido
fazer uma casa aqui defronte para o nascente, mande tapar aquele açude e mande
fazer o curral longe da casa pra quando chover o sujo do curral não ir para a
água do açude”. Depois, quando casada com o Oyama, nós herdamos a fazenda e nós
obedecemos literalmente.
Terezinha – A inauguração foi no mês de agosto, sete. Ô festa boa! Festa da
cumeeira (risos). Cumeeira da casa. Essa linha da cumeeira. Foi bem nesse
tempo, meu filho, que eu entrei nessa casa, que eu trabalhei para ela. E a
gente já ajudou em tudo, já.
Maria Luiza de Queiroz – Passava todo a parte de inverno,
de chuva, lá. Quando chegava setembro, outubro, ela vinha pra cá. Aí ficava até
o outro ano, até abril, maio, do ano seguinte. Aí voltava pra lá. De forma que
ela teve essa vivência muito grande lá no “Não Me Deixes”.
Rosita Ferreira de Souza – Ela sempre dizia: “Minha vida é o
Não Me Deixes”.
Zeca Alves – Sempre ela fazia artigo aqui nesse chalé.
Maria Luiza de Queiroz – Às vezes ela vinha nesse primeiro
quarto, na janela, porque era bem claro, ventilado. E escrevia. Mas batia com
uma rapidez!...
José Luís Lira – E ela começou na literatura escrevendo uma
crônica, criticando a escolha da rainha dos estudantes, que seria um concurso
de miss hoje.
Heloísa Buarque de Holanda – Assinada com pseudônimo “Rita de
Queluz”, arrasando com o tal concurso de beleza. E aí, os jornalistas que
receberam ficaram muito impressionados com o estilo dela. Que era um estilo
muito diferente. Aí foram descobrir quem era.
José Luís Lira – A carta tinha sido postada pelo correio e
vinha de Quixadá. Então dizem que o Jader de Carvalho e o Jaci de Menezes foi
que descobriram: “Não, isso é de Rachelzinha, filha de Daniel”.
Heloísa Buarque de Holanda – E foi imediatamente convidada
para escrever nesse lugar.
José Luís Lira – E ela assinou uma coluna literária durante
muito tempo no jornal “O Ceará”. E depois, parece que foi um castigo. Em 1931 a
Rachel foi eleita rainha dos estudantes. Então é uma história engraçada, e a
Rachel é cheia dessas coisas. No dia da coroação dela como rainha, o João
Pessoa tinha sido assassinado. Ela saiu correndo, jogou a coroa de lado e
disse; “Eu sou repórter; eu vou cobrir essa notícia”.
Heloísa Buarque de Holanda – O primeiro livro, ela chamava “o
livrinho”. Ela escreveu num caderninho, com lápis, à noite, à luz de lamparina.
Roberta Hernandes – “O Quinze” foi fundamental. Foi um romance
fundamental na literatura brasileira e basicamente nessa literatura que se usa
chamar de literatura regionalista. O primeiro livro regionalista de que se tem
notícia é “A Bagaceira”, de José Américo de Almeida. Alguns autores cogitaram
que na verdade fosse romance de homem com pseudônimo de mulher, por ser uma
escrita contida, uma escrita que não dava margem aos sentimentalismos, ou às
expansões que eles acreditavam típicas do gênero feminino.
José Luís Lira – O Quinze é um livro puro, com linguajar
expresso e é uma envolvente história de amor, com os dramas da seca.
Roberta Hernandes – Vários críticos apontaram o fato de que a
seca é a grande personagem de “O Quinze”. A seca e a transformação que ela traz
na vida das pessoas, a relação do nordestino com a natureza, a relação das
personagens com o clima e com a expectativa da chuva. Todos os limites a que o
ser humano chega numa situação como essa.
José Luís Lira – Rachel nasceu em 1910. Então ela tinha 5 anos
quando aconteceu a seca de “O Quinze”. E a seca de 1915 foi muito marcante,
naquele período todo. E ela mostra no livro a devoção. Tanto que ela começa o
livro com a mãe Inácia se benzendo. Fazendo uma prece a São José pedindo chuva,
que é aquela coisa muito nordestina, muito nossa.
Rachel de Queiroz – Mas quando “O Quinze” saiu, foi bem recebido.
Eu ganhei o prêmio da Fundação Graça Aranha e com isso me firmei literariamente
aqui no Rio, no meio desse pessoal que já era a parte mais representativa dos
escritores e poetas do Rio.
Heloísa Buarque de Holanda – Vindo pro Rio, ela imediatamente
arranjou emprego na revista “O Cruzeiro” e virou cronista. Então, até o final
da vida dela, Rachel fez sua crônica semanal, que acabou sendo uma crônica
nacional. E uma das coisas que ela dizia é que ela não era escritora em
hipótese alguma; ela era jornalista.
Maria Luiza de Queiroz – Rachel foi uma grande cronista,
talvez maior do que romancista.
Heloísa Buarque de Holanda – A crônica é um gênero literário
que eu acho muito interessante porque ele fica entre o jornalismo e a
literatura.
Maria Luiza de Queiroz – De trinta para até noventa e
tantos, a história do Brasil está toda lá, nas crônicas dela.
José Luís Lira – “Tangerine Girl” é por causa dos dias da
guerra. E o último porto dos rapazes norte-americanos que vinham por mar para
cá era Fortaleza. E de Fortaleza eles iam para a guerra. Tinha o Zeppelin, que
era aquela coisa extraordinária. Tinha histórias lendárias em torno do
Zeppelin. E as moças cearenses eram apaixonadas pelos rapazes norte-americanos;
todos bonitos, altos, loiros, aquela cor toda; e as moças cearenses abandonaram
os cearenses e se iludiam com aqueles rapazes.
Maria Luiza de Queiroz – Eu digo que ela usou muito de
licença poética para fazer aquela história. E começou por mim, mas só que não
foi nada daquilo. Realmente tinha aqueles dirigíveis chamados “Blimp” que eram
a coisa mais linda do mundo.
José Luís Lira – Em duas páginas, ela consegue resumir toda a
história da guerra aqui no Ceará. Os efeitos da guerra no Ceará.
Arnaldo Niskier – O Cruzeiro, naquela época, década de 60, era
a maior revista do país. Tinha mais de 500 mil exemplares.
Heloísa Buarque de Holanda – A última página geralmente é o
ponto de vista. Então ela tinha aquela página onde ficou por trinta anos e onde
ela se fez. A construção da personagem e da autora Rachel foi feita mais no
“Cruzeiro” do que no “Quinze”, que foi um livro. Como escritora, ela era muito
bissexta. Ela passava tempos sem escrever, depois escrevia. Mas a militância na
imprensa diária fazia com que ela estivesse sempre em evidência na cena
cultural pela crônica.
Arnaldo Niskier – A Rachel se guardou muito pra fazer livros de
qualidade. Ela não brigou pela quantidade.
Heloísa Buarque de Holanda – Ela tinha muito assunto político,
mas ela tinha o Ceará. Ela tinha uma coisa regional, um toque regional que não
abandonava ela em hipótese alguma. Fazia crônica de todos os lugares, mas você
via sempre que ela estava no Ceará. Ela carregava o Ceará dentro dela.
Terezinha – Eu me lembro que ela estava escrevendo ali na sala. E eu estava
ali sentada no alpendre, aí ela chegou para mim e disse: “Você se lembra
daquela música da velha debaixo da cama?”. Aí eu: “Sei não. Eu me esqueci, não
sei mais não”. “Vocês sabem, vocês não querem cantar! Canta! Cante aí porque eu
quero saber. E estou escrevendo um artigo e eu quero saber”. “Ai madre Rachel,
não sei mais como era, eu não me lembro mais não”. Ela cantava um pedacinho e
tal. “Não é assim?”. “É, mas não me lembro, não sei a música toda”. Tudo ela
fazia um artigo. (Cantando) A velha debaixo da cama...
Homem cantando – A véia criava um rato, na noite que se
danava, o rato chiava, a véia dizia: ai meu Deus, acabou tudo, tanto bem que eu
te queria. A véia debaixo da cama, a véia criava um gato. Na noite que se
danava, o rato chiava, o gato miava e a véia dizia: meu Deus que acabou tudo,
tanto bem que eu te queria. A véia debaixo da cama, a véia criava um cachorro.
Na noite que se danava, o rato chiava, o gato miava, o cachorro latia e a véia
dizia: Ai meu Deus que acabou tudo, tanto bem que eu te queria, a véia debaixo
da cama...
Terezinha – (Cantando: A véia debaixo da cama)... Eu não sei mais, me esqueci.
Eu sabia todinha, criava macaco, criava cachorro, criava um bocado de bicho que
essa véia criava. É uma música velha, é antiga. Ela gostava... Ela dava o maior
valor...
Zeca Alves – Desde o meu nascimento ela foi ser minha madrinha na fazenda...
Naquela fazenda. E o doutor Roberto, padrinho.
Manoel Chagas – Aqui, quase todo mundo era afilhado dela. Afilhado de batismo, ou
afilhado de fogueira.
Maria Luiza de Queiroz – Afilhado de fogueira é o
seguinte: o afilhado e a futura madrinha dão três voltas na fogueira. Em cada
volta que se encontram, a madrinha diz: “São João disse, São Pedro confirmou,
que você há de ser minha afilhada porque Nosso Senhor mandou”. E o afilhado
diz: “e você há de ser minha madrinha porque Nosso Senhor mandou”. Aí a
madrinha abençoa o afilhado e assim fica sendo afilhado por toda a vida. E a
Rachel tinha montes deles.
Roberta Hernandes – A Rachel teve uma filha, que morreu por volta
de um ano e meio, antes de completar dois anos. E ela dizia que isso a marcou
profundamente. Foi determinante na escrita. O único romance da Rachel que
aponta para a maternidade é o “Caminho de Pedras”, em que a Noemi termina
literalmente subindo uma ladeira equilibrando a barriga; ela está grávida,
depois da perda do filho, ela está grávida e espera esse nascimento. Em todos
os outros há alguma experiência falida de maternidade.
Rachel de Queiroz – Em 39, o meu primeiro marido. Nosso casamento
tinha sido muito abalado com a morte de nossa filha e nos separamos. Nesse
tempo era desquite. Em 41 me casei com o Oyama. Oyama de Macedo, médico. E eu
me lembro que no dia em que mamãe morreu, eu estava conversando com Maria Luísa
no jardim e estávamos nós duas chorando e eu disse: “O que eu tenho mais pena,
minha filha, é você ficar órfã tão novinha”. Ela levantou com aqueles olhos
enormes pra mim e disse: “Enquanto você for viva eu nunca vou ser órfã”. Aquilo
me consolou muito. E realmente a nossa relação é de mãe e filha; os dois filhos
dela me chamam de avó.
Maria Luiza de Queiroz – Ela fez uma crônica muito bonita,
uma crônica famosa chamada” O Estranho”, quando o Flávio nasceu. E depois ficou
escrevendo sobre eles. Ela era louca por criança, tanto que as histórias
infantis dela são belíssimas. Tem o Daniel, o Menino Mágico.
Flávio – Eu sou o vilão do Menino Mágico (risos). Sou o irmão mau.
Daniel – É um menino de família de classe média, que começa a fazer
mágicas.
Flávio – Ele é o menino mágico. Eu sou o irmão chato. Eu sou mais velho do
que ele. Era meio chato, aperreava ele; então, pra encher a bola dele, ela
escreveu O Menino Mágico e colocou ele como protagonista (risos).
Arnaldo Niskier – Ela foi a primeira mulher a entrar para a
Academia.
Heloísa Buarque de Holanda – Estava nos estatutos da Academia,
que era coisa para escritores homens. E a entrada da Rachel era a entrada da
mulher na literatura brasileira. Essa posse foi uma festa nacional. Tinha
torcida – era ela vascaína –, então tinha a torcida vascaína na entrada da
academia, toda aos gritos. Eram milhares de pessoas. A cidade parou. Tinha a
escola de samba. Era uma coisa literalmente gigantesca.
Heloísa Buarque de Holanda – Uma das coisas mais engraçadas
que eu acho da posse da Rachel é o impasse do fardão. O fardão foi desenhado
para homens. Como faz uma mulher para tomar posse? Vai tomar posse com essa
roupa?
Heloísa Buarque de Holanda – Fizeram desfiles de moda, vários,
com vários costureiros famosos apresentando versões femininas para o fardão. A
Academia parou para inventar essa roupa da Rachel. Quando ela começou a
carreira, entrou para o partido comunista e fundou inclusive o partido
comunista do Ceará. Até que ela escreveu o segundo romance, “João Miguel”, que
foi censurado pelo partido.
Maria Luiza de Queiroz – Aí disseram: “Companheira, nós
não aprovamos o seu livro”.
José Luís Lira – O partidão quis intervir no livro dela. O
livro, você sabe, é a história de uma moça da fazenda que se apaixona pelo
filho do patrão. Tem um desses pontos. E eles queriam o inverso.
Maria Luiza de Queiroz – Assim nós não aprovamos. Ela
disse que pegou os originais e vinha passando um bonde. Então ela correu, disse
que viu a porta aberta, lá atrás, e disse “então me dê os originais”. Aí correu
e disse: “Eu não vou fazer nada disso que vocês estão dizendo; vou-me embora,
passar bem”. Aí correu e pegou um bonde que ia passando. E publicou o “João
Miguel” tal como ela queria, tal como ela tinha escrito.
Maria Luiza de Queiroz – Todos os livros dela foram
editados pelo José Olympio. Na “Maria Moura” a gente... até fez uma reunião lá
em casa, com a finalidade de o José Olympio comprar a “Maria Moura”. Ele não
quis. Depois é que a Record comprou e agora ela está revivendo; comprou todos
os livros da Rachel da Siciliano e tudo saiu com o título de José Olympio. Ele
conservou o nome. E estão todos os livros saindo agora, de um por um, muito
bonitos. Foi essa a história dela na José Olympio. Até o José Olympio morrer,
ela estava lá.
Heloísa Buarque de Holanda – Uma pessoa que estude a mulher no
romance brasileiro, eu acho que a Rachel é o lugar mais expressivo.
Rachel de Queiroz – Na verdade eu sou escritora realista. Então o
mundo que eu mais conheço é o mundo feminino. O mundo masculino a gente supõe.
Então a gente cria aqueles arquétipos masculinos. Enquanto que o mundo
feminino, com suas riquezas e suas pobrezas, eu conheço muito melhor porque é o
meu mundo. E quem escreve só tem a sua experiência para dar.
Ângela Harumi Tamaru – É sempre a primeira pessoa
feminina. No caso da “Dora Doralina”, por exemplo, “As Três Marias” também,
“Conceição”, tudo aparece como a própria narradora. Um caso curioso é que o
único romance em terceira pessoa é “O Galo” e o personagem principal não era
uma mulher. Era um personagem homem, que exercia ali primeiro a função de
garçom, depois ele perde até a função de garçom porque ele não tem um braço
bom. Então você começa a perceber que é um homem fraco.
Heloísa Buarque de Holanda – O último romance dela, “Maria
Moura”, escrito com 80 anos, é fascinante porque é um bang-bang. É um livro de
ação, pura ação, ação o tempo todo.
Rachel de Queiroz – Tive muito trabalho para fazer o “Maria
Moura” por causa da linguagem. São cinco personagens falando. A época é 1830,
1840. A gente tinha que policiar terrivelmente a linguagem pra não cometer
anacronismos de linguagem.
Heloísa Buarque de Holanda – Eu me lembro ela descobrindo essa
turma. Ela disse: “Eu vou escrever um livro inspirado na rainha Elisabeth, que
é um monstro. E uma cangaceira que eu descobri que existia no nordeste".
Maria Luiza de Queiroz – E tinha uma história de uma Maria
de Oliveira, de mais ou menos... Da seca de 77. A seca estava muito grande e
ela, então, reuniu os filhos, os genros, os índios mansos que moravam lá. E
todo mundo. E resolveu ir assaltando as fazendas. Ela foi uma precursora do
Lampião.
Ângela Harumi Tamaru – A Maria Moura se traveste de
homem. Ela corta o cabelo, que é um rito de passagem dessas mulheres. Ela veste
a roupa do pai. Mas ela não esconde a identidade feminina. Todos sabem que ela
é mulher.
Heloísa Buarque de Holanda – Você vê nos personagens todos.
Eles um pouco se libertam numa situação familiar opressora e partem para uma
aventura geralmente acelerada, como é o caso da Maria Moura, que sai a cavalo –
pocotó, pocotó, pocotó, pocotó, pocotó – para a vida. E ela termina também
assim. Continua cavalgando.
Rachel de Queiroz – Quando alguém pergunta se algum um personagem
é autobiográfico, eu digo que todo personagem é autobiográfico.
Heloísa Buarque de Holanda – Desde o começo a morte estava
sobrevoando. Desde a cronista jovem. E no final a morte é o tema principal e é
de uma beleza incrível, mas também é de uma dor fundamental.
Maria Luiza de Queiroz – A gente foi almoçar e ela estava
muito calada. Eu disse: “Mas a Tel vem aqui, vem da Barra para almoçar com você
e você não liga para mim, não está me dando bola”. E ela disse; “É, mas lhe dei
almoço”. No dia seguinte de manhã ela morreu.
Rosita Ferreira de Souza– “O que a senhora está sentindo?”
“É essa agonia” “Pois eu vou chamar um médico”. “Não. O médico não resolve, não
decide nada, nada. Eu estou sentindo essa agonia. E vou viajar, vou viajar.
Vocês vão tomar um susto muito grande, porque eu vou morrer e vocês vão tomar
um susto muito grande, mas vou direto para o céu”. Eu disse: “O quê? Quem vê um
herege ir para o céu, coisa nenhuma. A senhora diz que não tem fé. Como é que
vai para o céu?”.
Rachel de Queiroz – Eu não posso dizer que tenho fé porque me
falta fé. É terrível, é uma pobreza horrorosa. Eu sonhava em ter um pouquinho
de fé, mas infelizmente nunca tive esse socorro e é muito duro você atravessar
os reveses da vida sem ter uma religião, uma fé em que se apóie. Eu sei por
experiência própria.
Maria Luiza de Queiroz – Eu achava que ela era eterna, que
ela era imortal, porque era da Academia. Eu não sei. É uma coisa tão presente
para mim. Ainda hoje a figura dela, a voz dela, as chinelinhas dela aqui nesse
corredor.
Zeca Alves – Minha madrinha foi a melhor pessoa do mundo. Foi minha mãe. Tudo
pra mim. Ela era só bondade. Só bondade. Eu estimo ela no céu e eu aqui na
terra.
José Luís Lira – O finalzinho do Maria Moura, quando o Duarte
diz assim para ela: “Sinhá, não vá. Não é uma briga para mulheres. Eles vão lhe
matar. E se lhe matarem?”. Ela diz: “Se eu morrer, eu morro e pronto. Mas
ficando aqui eu morro muito mais”. Então foi a trajetória que a Rachel fez a
vida toda.
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