"FORMAÇÃO DO LEITOR":QUANDO O SABER PERDE SABOR
científicos. O que os une são as palavras. E só. Um engenheiro gosta de
poesia? Nem pensar. Um poeta interessado em buracos-negros, quanta ou
nanotecnologia? Somente enquanto metáforas! Nossa "vã filosofia", no
entanto, trapaceia conosco o tempo todo, pois médicos, engenheiros,
arquitetos contam-se às dezenas entre os poetas e romancistas. Guimarães
Rosa, Pedro Nava, Jorge de Lima e Moacyr Scliar são, ou foram, médicos;
Euclides da Cunha, engenheiro e Murilo Mendes, dentista. Como então
duvidar que a escola, responsável pela transmissão de saberes e
formadora dos futuros profissionais da ciência, não possa lidar com a
literatura? Pode, sim. Talvez tenha dificuldade em fazê-lo, mas reúne em
latência as condições necessárias para tratar adequadamente a
literatura, de forma a obter dela modos de ver e compreender a
realidade, que permitam somar-se aos conhecimentos científicos, técnicos
e culturais, a dimensão estética, de sensibilidade e de reflexão
próprios da literatura.
Em primeiro lugar, faz-se necessário deixar
de lado a pretensão de transformar a literatura em aula de língua
portuguesa ou em lições de moral e de comportamento. A dimensão moral do
texto literário tem a ver com o mundo ficcional. Se assim não fosse, as
narrativas virtuosas das fábulas e contos tradicionais deveriam
dispensar os vilões, porque só os heróis interessariam à escola. Como
explicar a adesão dos alunos ao lobo mau, aos vampiros, a Pedro
Malasartes e a todos os personagens espertos e amorais das narrativas?
Serão os leitores pervertidos e amorais, eles também? Não acredito.
Apenas lêem os textos com olhares de ficção (reconhecem mecanismos
narrativos, abusam do pacto ficcional proposto pelo texto, vivem a
identificação inconsciente, percebem não racionalmente as utopias da
literatura). Por isso, mal compreendem e só aceitam quando imposta a
interpretação maniqueísta e/ou moralista do professor. Entre a ingênua
Bela Adormecida e a poderosa fada Malévola, entre o repetitivo Príncipe
Encantado e a esperteza vitoriosa de Malasarte, qual é a provável opção
do aluno?
Monteiro Lobato, ao querer ensinar o povo do Sítio do
Picapau Amarelo – e por extensão os leitores – conteúdos de aritmética,
geografia, história, política, língua portuguesa, botânica e biologia,
astronomia e geologia, teve que recobrir a informação científica com
várias camadas de fantasia e ficção. O que resta hoje de seus livros de
saberes? Sobrou o que transcendeu esse saber: a convivência natural com o
imaginário, a capacidade das palavras tirarem do nada seres quase gente
de carne e osso, como Pedrinho, Tia Nastácia, Dona Benta, Quindim,
Visconde, Narizinho e a maravilhosa Emília, a antialuna, segundo os
padrões da época.
Essa lição não foi esquecida por Ana Maria Machado,
filha intelectual de Lobato. Ela lançou, em 2006, um livro intitulado
Procura-se lobo. Nele, a defesa do meio ambiente (precisamente a
extinção de espécies de lobos, como o lobo-guará) está profundamente
enraizada numa narrativa cativante e alusiva, repleta de outras
histórias, que têm o lobo como protagonista e vilão: Os três porquinhos,
O lobo e o cordeiro, Chapeuzinho Vermelho, a lenda da fundação de Roma e
muitas outras. Perfeita narrativa, com humor, criatividade,
contextualização do universo das histórias infantis e um rápido fecho
ecológico. Hipertrofiar o aspecto narrativo, alargando o final
ecológico, seria submeter o texto aos interesses da escola, traindo
assim sua unidade literária.
Também em Pinóquio, de Carlo Collodi,
escrito em 1883, já era narrada a história de um boneco avesso a todos
os ensinamentos, rebelde em relação à escola, aos adultos e ao
bom-senso. A narrativa é repleta de lições e frases moralistas que,
naturalmente, envelheceram. O que salva o texto é a busca incessante do
boneco pela humanização. Seus defeitos e desobediências lhe garantem a
humanidade. A literatura que trata de valores que transcendem os saberes
escolares venceu mais uma vez. A narração educativa não conseguiu
sobreviver ao personagem e sua significação mais profunda.
Nesses exemplos, o sabor ficcional predominou sobre o saber fechado e escolarizado, mesmo que dotado de boas intenções.
Marta Morais da Costa
Doutora
em Literatura Brasileira, professora da UFPR e da PUCPR, escritora e
estudiosa da área de leitura, dramaturgia e literatura infantil e
juvenil
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