Capacidades de leitura envolvidas nas diversas práticas letradas
Diferentes tipos de letramento, diferentes práticas de leitura, em diversas situações, vão exigir diferentes combinações de capacidades de várias ordens. São elas:
Capacidades de decodificação
• Compreender diferenças entre escrita e outras formas gráficas (outros sistemas de representação);
• Dominar as convenções gráficas;
• Conhecer o alfabeto;
• Compreender a natureza alfabética do nosso sistema de escrita;
• Dominar as relações entre grafemas e fonemas;
• Saber decodificar palavras e textos escritos;
• Saber ler reconhecendo globalmente as palavras;
• Ampliar a sacada do olhar para porções maiores de texto que meras palavras, desenvolvendo assim fluência e rapidez de leitura.
Capacidades de compreensão (estratégias)
• Ativação de conhecimentos de mundo: previamente à leitura ou durante o ato de ler, o leitor está constantemente colocando em relação seu conhecimento amplo de mundo com aquele exigido e utilizado pelo autor no texto. Caso essa sincronicidade falhe, haverá uma lacuna de compreensão, que será preenchida por outras estratégias, em geral de caráter inferencial.
• Antecipação ou predição de conteúdos ou propriedades dos textos: O leitor não aborda o texto como uma folha em branco. A partir da situação de leitura, de suas finalidades, da esfera de comunicação em que ela se dá; do suporte do texto (livro, jornal, revista, out-door etc.); de sua disposição na página; de seu título, de fotos, legendas e ilustrações, o leitor levanta hipóteses tanto sobre o conteúdo como sobre a forma do texto ou da porção seguinte de texto que estará lendo. Essa estratégia opera durante toda a leitura e é também responsável por uma velocidade maior de processamento do texto, pois o leitor não precisará estar preso a cada palavra do texto, podendo antecipar muito de seu conteúdo. Como dizia Frank Smith (1989), trata-se de um “jogo de adivinhação”.
• Checagem de hipóteses: Ao longo da leitura, no entanto, o leitor estará checando constantemente essas suas hipóteses, isto é, confirmando-as ou desconfirmando-as e, consequentemente, buscando novas hipóteses mais adequadas. Se assim não fosse, o leitor iria por um caminho e o texto por outro.
• Localização e/ou cópia de informações: Em certas práticas de leitura (para estudar, para trabalhar, para buscar informações em enciclopédias, obras de referência, na Internet), o leitor está constantemente buscando e localizando informação relevante, para armazená-la – por meio de cópia, recorte-cole, iluminação ou sublinhado – e, posteriormente, reutilizá-la de maneira reorganizada. É uma estratégia básica de muitas práticas de leitura (mas não de outras, como a leitura de entretenimento ou de fruição), mas também não opera sozinha, sem a contribuição das outras que estamos comentando.
• Comparação de informações: Ao longo da leitura, o leitor está constantemente comparando informações de várias ordens, advindas do texto, de outros textos, de seu conhecimento de mundo, de maneira a construir os sentidos do texto que está lendo. Para atividades específicas, como as de resumo ou síntese do texto, esta comparação é essencial para medir relevância das informações que deverão ser retidas.
• Generalização (conclusões gerais sobre fato, fenômeno, situação, problema, etc. após análise de informações pertinentes): Uma das estratégias que mais contribui para a síntese resultante da leitura é a generalização exercida sobre enumerações, redundâncias, repetições, exemplos, explicações etc. Ninguém guarda um texto fielmente na memória. Podemos guardar alguns de seus trechos ou citações que mais nos impressionaram, mas em geral armazenamos informações na forma de generalizações responsáveis, em grande parte, pela síntese.
• Produção de inferências locais: No caso de uma lacuna de compreensão, provocada por exemplo, por um vocábulo ou uma estrutura desconhecidos, exerceremos estratégias inferenciais, isto é, descobriremos, pelo contexto imediato do texto (a frase, o período, o parágrafo) e pelo significado, anteriormente já construído, novo significado para o termo até então desconhecido.
• Produção de inferências globais: Nem tudo está dito ou posto num texto. O texto tem seus implícitos ou pressupostos que também têm de ser compreendidos numa leitura efetiva. Para fazê-lo, o leitor lança mão, ao mesmo tempo, de certas pistas que o autor deixa no texto, do conjunto da significação já construída e de seus conhecimentos de mundo, inclusive lógicos.
Capacidades de apreciação e réplica do leitor em relação ao texto (interpretação, interação)
• Recuperação do contexto de produção do texto: Para interpretar um texto discursivamente, é preciso situá-lo: Quem é seu autor? Que posição social ele ocupa? Que ideologias assume e coloca em circulação? Em que situação escreve? Em que veículo ou instituição? Com que finalidade? Quem ele julga que o lerá? Que lugar social e que ideologias ele supõe que este leitor intentado ocupa e assume? Como ele valora seus temas? Positivamente? Negativamente? Que grau de adesão ele intenta? Sem isso, a compreensão de um texto fica num nível de adesão ao conteúdo literal, pouco desejável a uma leitura crítica e cidadã. Sem isso, o leitor não dialoga com o texto, mas fica subordinado a ele.
• Definição de finalidades e metas da atividade de leitura: Todo o controle do processo de leitura, da ativação de estratégias ou do exercício de capacidades está subordinado às metas ou finalidades de leitura impostas pela situação em que o leitor se encontra. Ler para estudar, trabalhar, entreter-se, fruir esteticamente do texto, buscar informação, atualizar-se, orientar-se. Não há leitura, a não ser, por vezes, a leitura escolar, que não seja orientada a uma finalidade da vida.
• Percepção de relações de intertextualidade (no nível temático): Ler um texto é colocá-lo em relação com outros textos já conhecidos, outros textos que estão tramados a este texto, outros textos que poderão dele resultar como réplicas ou respostas. Quando esta relação se estabelece pelos temas ou conteúdos abordados nos diversos textos, chamamos a isso intertextualidade.
• Percepção de relações de interdiscursividade (no nível discursivo): Perceber um discurso é colocá-lo em relação com outros discursos já conhecidos, que estão tramados a este discurso. Quando esta relação se estabelece, então, num dado texto, como por exemplo, nas paródias, nas ironias, nas citações, falamos de interdiscursividade.
• Percepção de outras linguagens : Imagens, som, imagens em movimento, diagramas, gráficos, mapas etc. como elementos constitutivos dos sentidos dos textos e não somente da linguagem verbal escrita.
• Elaboração de apreciações estéticas e/ou afetivas: Ao ler, replicamos ou reagimos ao texto constantemente: sentimos prazer, deixamo-nos enlevar e apreciamos o belo na forma da linguagem, ou odiamos e achamos feio o resultado da construção do autor; gostamos ou não gostamos, pelas mais variadas razões. E isso pode, inclusive, interromper a leitura ou levar a muitos outros textos.
• Elaboração de apreciações relativas a valores éticos e/ou políticos: Discutimos também com o texto: discordamos, concordamos, criticamos suas posições e ideologias. Avaliamos os valores colocados em circulação pelo texto e destes são especialmente importantes para a cidadania os valores éticos e políticos. Essa capacidade é que leva a uma réplica crítica a posições assumidas pelo autor no texto.
A contribuição do letramento escolar e das diversas disciplinas no processo de formação do leitor
Para Bakhtin (1934-35: 142), “o ensino das disciplinas verbais conhece duas modalidades básicas escolares de transmissão que assimila o [discurso de] outrem (do texto, das regras, dos exemplos): “de cór” e “com suas próprias palavras”. […] O objetivo da assimilação da palavra de outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formação ideológica do homem, no sentido exato do termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta não mais na qualidade de informações, indicações, regras, modelos etc., - ela procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritária e como a palavra internamente persuasiva.”
Ora, a escola e a educação básica são lugares sociais de ensino-aprendizagem de conhecimento acumulado pela humanidade – informações, indicações, regras, modelos –, mas também, e fundamentalmente, de formação do sujeito social, de construção da ética e da moral, de circulação das ideologias. Falar na formação do leitor cidadão é justamente não olhar só uma das faces desta moeda; é permitir a nossos alunos a confiança na possibilidade e as capacidades necessárias ao exercício pleno da compreensão. Portanto, trata-se de nos acercarmos da palavra não de maneira autoritária, colada ao discurso do autor, para repeti-lo “de cór”; mas de maneira internamente persuasiva, isto é, podendo penetrar plasticamente, flexivelmente as palavras do autor, mesclar-nos a elas, fazendo de suas palavras nossas palavras, para adotá-las, contrariá-las, criticá-las, em permanente revisão e réplica.
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